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Análise - O caso das motocicletas em São Paulo: informalidade e carnificina

19.07.2012 - 14:35

A representante da Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, Heloísa Helena Mello Martins apresentou um quadro epidêmico e sombrio dos motociclistas na cidade de São Paulo. O aumento da frota, o debate e o veto ao artigo 56 do Código Nacional de Trânsito constituem apenas parte de um sintoma cujos resultados configuram uma carnificina de jovens.

Os motociclistas em São Paulo fazem uso do poder de velocidade e de tudo aquilo a que as duas rodas lhe dão direito. Eles são 12,6% da frota de veículos e são responsáveis por 57,3% do total de acidentes, dos quais 47,1% são fatais, em São Paulo. Também são responsáveis por 30,8% dos atropelamentos (dos quais 22,2% são fatais). O uso de capacetes, as proteções dos membros inferiores (os chamados “mata cachorro”) e as luvas que, segundo Heloísa Helena aproximadamente 97% utilizam, não remediam a fragilidade física a que os motociclistas estão expostos. Eles seguem morrendo e expondo os demais membros do trânsito à violência.

Uma pesquisa encomendada ao Instituto IBOPE pela CET, aponta do que se faz a febre de mortes nas ruas da maior cidade brasileira. Dirigir entre veículos, excesso de velocidade e cruzamento de semáforos. A conduta agressiva dos motociclistas ainda não foi estudada em sua profundidade e as causas desse sintoma, cuja característica é a de uma carnificina, envolvem alguns dos aspectos mais determinantes da concepção de crescimento econômico do País. No sistema viário, o motociclista, em relação ao dominante automóvel e ao transporte coletivo perde o jogo. Mas a questão é: por que a moto entrou no jogo com tanta intensidade?

Por conta do preço, por conta da agilidade para quem mora longe de onde trabalha, por conta da velocidade da entrega e do transporte de gente e coisas, porque faz parte de uma dinâmica informal das relações econômicas. Baixo preço, agilidade, velocidade e informalidade: a receita, no caldeirão do trânsito paulistano, é a morte e muito sangue, incapacitação permanente e interpelação de um poder público em larga medida despreparado para lidar com o tamanho do problema.

Como não bastasse, há um grande obstáculo à imputação de penalidades e ao exercício legal da proteção dos motociclistas. Trata-se do veto ao artigo 56 do Código Nacional de Trânsito. O artigo diz: “É proibida ao condutor de motocicletas, motonetas e ciclomotores a passagem entre veículos de filas adjacentes ou entre a calçada e veículos de fila adjacente a ela”. Segundo a representante da CET, “é aí que o motociclista morre. Trinta e cinco por cento dos acidentes fatais ocorrem nos corredores. O corredorzinho que os motociclistas pegam é de um metro, e eles seguem alternadamente posicionados no cone cego de um veículo a outro”.

Muitas vezes, quando há o atropelamento, os motoristas, sobretudo de caminhões, sequer percebem que deixaram um motociclista atropelado. Às vezes, lembrou Heloísa, avisam aos motoristas de caminhão que eles deixaram para trás, sem notar, um motociclista atropelado ou morto, na via pública. “A gente já tentou pelo discursos várias vezes, sabemos que não temos respaldo legal para enquadrar essa forma de conduzir. Ainda estamos pesquisando maneiras de desestimular esse uso dos corredores”, disse a representante da CET.

Um dos aspectos da dificuldades enfrentadas veio com os dados da pesquisa do IBOPE, sobre o perfil do motociclista paulistano. Segundo Heloísa, a percepção de que os motociclistas seriam majoritariamente motofretistas (os chamados “motoboys”) revelou-se equivocada. O levantamento mostrou um quadro em que a maioria (75%) é jovem, com idade entre 18 e 30 anos, 55% tem ensino médio completo, isto é, não tem especialização e entra no mercado de trabalho sem perfil definido. A renda varia entre 1 e 5 salários mínimos.

“Então temos uma população jovem, masculina, renda de baixa para média, baixo preparo profissional. Acreditava-se, no início do ano 2000, que os motoristas eram motoboys. Mas a pesquisa mostrou que estávamos errados. A maioria mostrou outro perfil: 43% usa a motocicleta para irem de casa ao trabalho, 26% é motoboy ou motofretista e o restante é de estudante e mecânico e os usuários de moto para lazer (31%). “Isso acabou quebrando as pernas das políticas de combate à violência no trânsito. Não são apenas os motofretistas. As estratégias têm de alcançar a todos os motociclistas”, disse. O problema é maior e mais profundo. Ele atravessa classes sociais, atividades econômicas e níveis educacionais. Mas é possível estabelecer um recorte, relativo à faixa etária. “O foco de nossa preocupação é o motociclista jovem, que anda em alta velocidade, que não respeita a regra”, afirmou Heloísa.

Então, afirmou a especialista em trânsito, a CET tomou algumas iniciativas. Ofereceram curso de pilotagem segura, com aulas em salas de aula e aulas práticas, com o objetivo fundamental de conscientizar quanto a comportamentos seguros. O diagnóstico dos instrutores práticos desses cursos, sobre as aulas práticas, é bastante preocupante. Os instrutores relataram vícios básicos, como não saberem usar os freios, posicionarem os pés na motocicleta nem se safarem de situações de risco. Qual o problema dessa incapacidade? Apenas 10% dos motociclistas em são Paulo se matriculam nos CFCs?. Agora, disse Heloísa, oferecemos curso de 30 horas.

A falta de educação não se combate com iniciativas localizadas, como se pode observar do relato de caso feito por Heloísa Helena. A CET tentou, então, criar um selo de qualidade do uso responsável da motocicleta, inspirados pelo Instituto Ethos. Trata-se da criação do “Selo Trânsito Seguro”, uma iniciativa voltada à regulamentação da atividade de motofrete. Problema: motocicleta na atividade econômica é uma das mais expressivas manifestações da informalidade econômica no País. “São milhares de empresas pequenas, com três meninos nas garagens, telefonando e agendando frete de motoboys. É uma atividade que expõe muito os motociclistas e que não levou a muitos resultados. O setor é informal, nossa tentativa de regularizar não adiantou muito.”A contratação de mão de obra é regida pelo mercado, e as regras do mercado são estas: maior velocidade e menor preço.

Outra iniciativa que não deu certo foi a criação de faixas exclusivas para motociclistas. Foi um sucesso de crítica e os motoqueiros aplaudiram, mas não deu certo, constatou a representante da CET. Os acidentes triplicaram, seja porque os pedestres ignoram a vidas motos, seja porque, vendo a alternativa, os motoristas de carro invadem a pista de motoqueiros.

Contra a segregação de áreas, a técnica da companhia paulista defendeu que a solução não pode ser compartimentada. “Mais do que segregar, o importante é garantir a harmonia do trânsito, principalmente através do controle da velocidade. Seguir no aprimoramento da habilitação, na melhoria da qualidade de pilotagem do motocliclista, na conscientização do risco que ele corre e na fiscalização, para garantir que se tenha o cumprimento da regra”, afirmou.

O que funciona efetivamente, disse Heloísa, é o controle de velocidade, além, é claro, do cumprimento da lei. Ela mencionou a operação Cavalo de Aço, que tem recolhido motos em situação ilegal diariamente. Segundo ela, aproximadamente 50% dessas motos são dirigidas por motoristas sem habilitação. “A gente realmente contabiliza um número pavoroso de mortes, mas nós não estamos realmente laçando o problema”, constatou.

Qual é mesmo a dificuldade? Educação. Mas é educação para o trânsito, simplesmente? “Existem tarefas que vão muito além, nós temos que trazer é todo mundo para o nível da legalidade”, afirmou a representante da CET. Isso implicaria, no caso das motocicletas, incluir um setor econômico inteiro no sistema produtivo da maior cidade da América Latina. Só isso e tudo isso. Ademais, não é rigorosamente possível fazê-lo se o artigo 56 do Código Nacional de Trânsito segue não regulamentado. “O degrau que ainda temos que alcançar é conseguir sair desse patamar, é o esforço de convencimento da necessidade de atuar em conjunto em prol da harmonia no trânsito?, concluiu.

Não há fenômeno mais revelador da encruzilhada que atravessa os problemas do trânsito e da mobilidade no País, hoje, do que o uso das motocicletas. Trata-se da explosão de uma frota de veículos com alta capacidade de destruição e morte, que se multiplicam na informalidade econômica e produtiva e que vitima milhares de jovens por ano, em São Paulo. Mais do que um problema de saúde pública, que é - aliás, talvez seja mesmo um caso de uma epidemia social -, mais do que uma interpelação à consciência cidadã formada nas escolas em que esses jovens cursaram o seu ensino médio, mais do que uma fragilidade, por fim, do sistema de controle das habilitações e dos exames para a concessão da carteira de habilitação, o que a carnificina das motocicletas em São Paulo evidencia é a demanda de uma sociedade por dinheiro e serviço em alta velocidade, a qualquer custo. Uma coisa tão bestial como a indiferença do caminhoneiro com os restos mortais do motociclista deixados para trás.